30.3.14

A hora da estrela (excerto)




Pensando bem: quem não é um acaso na vida? Quanto a mim, só me livro de ser apenas um acaso porque escrevo, o que é um ato que é um fato. É quando entro em contato com forças interiores minhas, encontro através de mim o vosso Deus. Para que escrevo? E eu sei? Sei não. Sim, é verdade, às vezes também penso que eu não sou eu, pareço pertencer a uma galáxia longínqua de tão estranho que sou de mim. Sou eu? Espanto-me com o meu encontro.


LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.



28.3.14

Sonnet 76 / Soneto 76




Why is my verse so barren of new pride,
So far from variation or quick change?
Why, with the time, do I not glance aside
To new-found methods and to compounds strange?
Why write I still all alone, ever the same,
And keep invention in a noted weed,
That every word doth almost tell my name,
Showing their birth and where they did proceed?
O know, sweet love, I always write of you,
And you and love are still my argument;
So all my best is dressing old words new,
Spending again what is already spent;
For as the sun is daily new and old,
So is my love, still telling what is told.



Por que meu verso é sempre tão carente
De mutações e variações de temas?
Por que não olho as coisas do presente
Atrás de outras receitas e sistemas?
Por que só escrevo essa monotonia,
Tão incapaz de produzir inventos
Que cada verso quase denuncia
Meu nome e seu lugar de nascimento?
Pois saiba, amor, só escrevo a seu respeito
E sobre o amor, são meus únicos temas,
E assim vou refazendo o que foi feito
Reinventando as palavras do poema.
Como o sol, novo e velho a cada dia,
O meu amor rediz o que dizia.


SHAKESPEARE, William. Sonnet 76. Tradução de Geraldo Carneiro. In: CARNEIRO, Geraldo (Org.). O discurso do amor rasgado: poemas, cenas e fragmentos de William Shakespeare. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.


25.3.14

Pedido



Houvesse Deus e os deuses
a fim de que lhes pedisse:

o coração em que penso, por
mais frases e bocas que beije,

todas ache feias e frias, e que,
amanhã, ao despertar, ou à saída

da boate, pense em mim quando
a luz do dia sobre ele se desate.


FERRAZ, Eucanaã. Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


22.3.14

Ma bohème / Minha boêmia



Je m'en allais, les poings dans mes poches crevées;
Mon paletot aussi devenait idéal;
J'allais sous le ciel, Muse! et j'étais ton féal;
Oh! là! là! que d'amours splendides j'ai rêvées!

Mon unique culotte avait un large trou.
- Petit-Poucet rêveur, j'égrenais dans ma course
Des rimes. Mon auberge était à la Grande-Ourse.
- Mes étoiles au ciel avaient un doux frou-frou

Et je le écoutais, assis au bord des routes,
Ces bons soirs de septembre où je sentais des gouttes
De rosée à mon front, comme un vin de vigueur;

Où, rimant au milieu des ombres fantastiques,
Comme des lyres, je tirais les élastiques
De mes souliers blessés, un pied près de mon coeur!



Lá ia eu, de mãos nos bolsos descosidos;
Meu paletó também tornava-se ideal;
Sob o céu, Musa, eu fui teu súdito leal,
Puxa vida! a sonhar amores destemidos!

O meu único par de calças tinha furos.
- Pequeno Polegar do sonho ao meu redor
Rimas espalho. Albergo-me à Ursa Maior.
- Os meus astros no céu rangem frêmitos puros.

Sentado, eu os ouvia, à beira do caminho,
Nas noites de setembro, onde senti qual vinho
O orvalho a rorejar-me a fronte em comoção;

Onde, rimando em meio a imensidões fantásticas,
Eu tomava, qual lira, as botinas elásticas
E tangia um dos pés junto ao meu coração!


RIMBAUD, Arthur. Poesia completa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. Tradução de Ivo Barroso.


11.3.14

Rimbaud



The nights, the railway-arches, the bad sky,
His horrible companions did not know it;
But in that child the rhetorician's lie
Burst like a pipe: the cold had made a poet.

Drinks bought him by his weak and lyric friend
His five wits systematically deranged,
To all accustomed nonsense put an end;
Till he from lyre and weakness was estranged.

Verse was a special illness of the ear;
Integrity was not enough; that seemed
The hell of childhood: he must try again.

Now, galloping through Africa, he dreamed
Of a new self, a son, an engineer,
His truth acceptable to lying men.

December 1938



As noites, os arcos da ferrovia, o feio céu,
Não o sabiam sequer suas horríveis companhias;
A mentira retórica, qual chaminé, o
Queimava em criança: do frio nascera a poesia.

O álcool que o amigo fraco e lírico ofertara
Metodicamente os sentidos desregrou,
Pôs fim ao contrassenso ao qual se acostumara;
Até que de lira e fraqueza se afastou.

O verso era uma doença especial do ouvido;
A integridade não era o bastante; ali estava
O inferno da infância: devia tentar de novo.

Agora, cavalgando em África, sonhava
Com um outro eu, um filho, alguém bem sucedido,
E sua verdade aceita pelos mentirosos.

Dezembro de 1938



AUDEN, W. H. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Tradução de João Moura Jr.


7.3.14

XII: 120



Estou bem armado e, embora mortal, vou te combater
sem pedir quartel; tu, Eros, não me ataques mais.
Se me achares ébrio, leva-me preso, mas estando eu
sóbrio, terei a razão em armas contra ti.


POSSIDIPO. In: PAES, José Paulo (Org.). Poemas da antologia grega ou palatina. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.