29.12.11

O sorriso



Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.


ANDRADE, Eugénio de. Poemas de Eugénio de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Seleção, estudo e notas de Arnaldo Saraiva.


11.12.11

Necessito de um ser, um ser humano



Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso

Contra meu ser arfante:
Necessito de um ser sendo ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.


FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Pesquisa e organização de Maria Eugenia Boaventura.

10.12.11

O som desta paixão esgota a seiva



O som desta paixão esgota a seiva
Que ferve ao pé do torso; abole o gesto
De amor que suscitava torre e gruta,
Espada e chaga à luz do olhar blasfemo;
O som desta paixão expulsa a cor
Dos lábios da alegria e corta o passo
Ao gamo da aventura que fugia;
O som desta paixão desmente o verbo
Mais santo e mais preciso e enxuga a lágrima
Ao rosto suicida, anula o riso;
O som desta paixão detém o sol,
O som desta paixão apaga a lua.
O som desta paixão acende o fogo
Eterno que roubei, que te ilumina
A face zombeteira e me arruína.


FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Pesquisa e organização de Maria Eugenia Boaventura.

4.12.11

Mais doce



Confesso: não pude desamar de ti.
Tornei-me, então, tua mãe.

Afinal, não serias o meu homem,
eu sabia. Não vacilei, e dedico-me

à condição mais intestina,
mais doce – a de quem cozinha,

cose, espera, cala, tece,
aconselha, espera, vela

(mesmo que não, é como se fosse),
à condição de quem vê passar

o tempo no cabelo, nos gestos,
nas histórias, nos amigos, nos dentes

do seu pequeno príncipe, do seu dolorido,
do seu príncipe feliz.

Porque não me querias como homem,
porque não poderia ser teu pai,

restou-me não ser menos que este amor
que segue ao teu lado

mesmo quando é tão distante teu caminho,
teu silêncio, teu passo rápido, teu sonho.

Choro,
que o destino das mães é sempre triste.

Porque é triste não poder ser
a mulher do seu menino.


FERRAZ, Eucanaã. Rua do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.