28.1.12

Não gosto tanto



Não gosto tanto
de livros
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito dos seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
dos livros
e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever


LOPES, Adília. Antologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

22.1.12

Espera



Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.


ANDRADE, Eugénio de. Poemas de Eugénio de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Seleção, estudo e notas de Arnaldo Saraiva.


18.1.12

Impreciso I



Na última vez tinha desistido de tentar,
na vez anterior e antes dessa também.
E lá estava. Pronto pra bater a cabeça
contra a parede, morrer na praia. Essa
imagem lhe era bonita: morrer na praia.
E não encontrava sossego ali, debaixo
do sol intenso. Queria ir de encontro ao
mar. Ser mais forte que o mar, derrubar
o mar. A cada onda que vinha e o jogava
para trás, ele corria e se arremessava
para frente. O gosto de sal na garganta,
areia na sunga e no cabelo. Assim que
aprendeu como se nada. Furando ondas
por horas a fio. E quando se dava por
vencido, voltava à praia pra morrer um
pouco e recomeçar.

SALOMÃO, Omar. Impreciso. Rio de Janeiro: Dantes, 2011.

16.1.12

Vivendo sob o fogo (1)



P. 304


O que não foi nomeado – não existe no mundo. O erro de Serioja foi o de querer certezas e, querendo isso, cerrar as minhas pálpebras, minha vida – o que ela é (uma realidade repugnante, além de uma desordem familiar). Eu, que nunca havia traído a mim mesma, tornei-me traidora para ele.


**


O direito ao segredo. É preciso respeitá-lo. Sobretudo quando se sabe que o segredo é uma necessidade nata, que nasceu com o outro, que é a respiração do outro. Os nomes nada têm a ver, aqui. Seja sábio, não dê nomes (não pergunte).


TSVETÁIEVA, M. Vivendo sob o fogo: confissões. São Paulo: Martins, 2008.


7.1.12

Os amantes sem dinheiro



Tinham o rosto aberto a quem passava
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinha como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos,
mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.


ANDRADE, Eugénio de. Primeiros poemas / As mãos e os frutos / Os amantes sem dinheiro. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2006.