19.3.18

elegia 1938



Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.


ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

16.3.18

voa



em tempos de desumanidade no Brasil, eu abomino quem prefere as armas de metal.
como disse Maiakovski, "Nosso arsenal é o canto. / Metal? São timbres que tinem".

hoje à noite, Antonio Cicero toma posse na Academia Brasileira de Letras. "alguém se reconhece poeta e decide dedicar-se à poesia", diz Cicero no livro "A poesia e a crítica", "a partir do momento em que se apaixona por um ou por vários poemas de verdade". a importância do cânone literário será o norte de seu discurso de posse, como antecipa a Folha de São Paulo em página inteira que também celebra a ótima coincidência de que, justo nessa sexta-feira, Marina Lima lança seu novo disco, que tem um título bonito: "Novas famílias".

graças ao Duda Leite, soube que o jornal oferece, na versão digital da matéria, uma playlist com canções de Cicero de diferentes épocas, da qual tenho a honra de fazer parte. fui dormir triste com o Brasil, mas acordei feliz. saúdo meu grande amigo, a poesia e o lance do poema:

"Pisa sobre estas esplêndidas ruínas e,
se não há caminhos,
voa."

AN.