23.8.13

Agradecimento



Devo muito
aos que não amo.

O alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outrem.

A alegria de não ser eu
o lobo de suas ovelhas.

A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar.

Não espero por eles
andando da janela à porta.
Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo,
o que o amor nunca perdoria.

Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas.

As viagens com eles são sempre um sucesso,
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras.

E quando nos separam
sete colinas e rios
são colinas e rios
bem conhecidos dos mapas.

É mérito deles
eu viver em três dimensões,
num espaço sem lírica e sem retórica,
com um horizonte real porque móvel.

Eles próprios não veem
quanto carregam nas mãos vazias.

"Não lhes devo nada" 
diria o amor
sobre essa questão aberta.


SZYMBORSKA, Wislawa. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien.


19.8.13

No fluxo e refluxo da maré



Seis horas enche e outras tantas vaza
A maré pelas margens do oceano,
E não larga a tarefa um ponto no ano,
Porquanto o mar rodeia e o sol abrasa.

Desde a esfera primeira opaca ou rasa,
A Lua com impulso soberano
Engole o mar por um secreto cano,
E quando o mar vomita, o mundo arrasa.

Muda-se o tempo, e suas temperanças,
Até o céu se muda, a terra, os mares,
E tudo está sujeito a mil mudanças.

Só eu, que todo o fim de meus pesares
Eram de algum minguante as esperanças
Nunca o minguante vi de meus azares.


MATOS, Gregório de. Desenganos da vida humana e outros poemas. São Paulo: Hedra, 2013.


12.8.13

Ítaca



Quando, de volta, viajares para Ítaca,
roga que tua rota seja longa,
repleta de peripécias, repleta de conhecimentos.
Aos Lestrigões, aos Ciclopes,
ao colérico Posêidon, não temas:
tais prodígios jamais encontrarás em teu roteiro,
se mantiveres altivo o pensamento e seleta
a emoção que tocar teu alento e teu corpo.
Nem Lestrigões nem Ciclopes,
nem o áspero Posêidon encontrarás,
se não os tiveres imbuído em teu espírito,
se teu espírito não os sucitar diante de ti.

Roga que tua rota seja longa,
que, mútiplas, se sucedam as manhãs de verão.
Com que euforia, com que júbilo extremo
entrarás, pela primeira vez, num porto ignoto!
Faze escala nos empórios fenícios
para arrematar mercadorias belas:
madrepérolas e corais, âmbares e ébanos
e voluptosas essências aromáticas, várias,
tantas essências, tantos arômatas, quantos puderes achar.

Detém-te nas cidades do Egito - nas muitas cidades -
para aprenderes coisas e mais coisas com os sapientes zelosos.
Todo tempo em teu íntimo Ítaca estará presente.
Tua sina te assina esse destino,
mas não busques apressar tua viagem.
É bom que ela tenha uma crônica longa, duradoura,
que aportes velho, finalmente, à ilha,
rico do muito que ganhares no decurso do caminho,
sem esperares, de Ítaca, riquezas.
Ítaca te deu essa beleza de viagem.
Sem ela não a terias empreendido.
Nada mais precisa dar-te.

Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.
Agora tão sábio, tão plenamente vivido,
bem compreenderás o sentido das Ítacas.


KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas de Konstantinos Kaváfis. São Paulo: Cosac Naify, 2012. Tradução de Haroldo de Campos.