27.12.13

Ligue os pontos



enquanto você dormia liguei
os pontos sardentos das suas
costas na esperança de que
a caneta esferográfica revelasse
a imagem de algum ser mitológico
de nome proparoxítono o mapa
detalhado de algum tesouro
submerso formasse quem sabe
alguma constelação ruiva oculta
na epiderme e me deparei
com o contorno de um polígono
arbitrário que não me fornecia
metáforas não apontava direções
simplesmente dizia: você está aqui


DUVIVIER, Gregorio. Ligue os pontos: poemas de amor e big bang. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.


25.12.13

Gacela de la huida / Gazel da fuga



Me he perdido muchas veces por el mar
con el oído lleno de flores recién cortadas,
con la lengua llena de amor y de agonía.
Muchas veces me he perdido por el mar,
como me pierdo en el corazón de algunos niños.

No hay nadie que al dar un beso
no sienta la sonrisa de la gente sin rostro,
ni nadie que al tocar un recién nacido
olvide las inmóviles calaveras de caballo.

Porque las rosas buscan en la frente
un duro paisaje de hueso
y las manos del hombre no tienen más sentido
que imitar a las raíces bajo tierra.

Como me pierdo en el corazón de algunos niños,
me he perdido muchas veces por el mar.
Ignorante del agua, voy buscando
una muerte de luz que me consuma.


Perdi-me muitas vezes pelo mar,
com o ouvido cheio de flores recém-cortadas,
com a língua cheia de amor e de agonia.
Muitas vezes perdi-me pelo mar,
como me perco no coração de alguns meninos.

Não há noite em que, ao dar um beijo,
não sinta o sorriso das pessoas sem rosto,
nem há ninguém que, ao tocar um recém-nascido,
olvide as imóveis caveiras de cavalo.

Porque as rosas buscam em frente
uma dura paisagem de osso
e as mãos do homem não têm mais sentido
que imitar as raízes sob a terra.

Como me perco no coração de alguns meninos,
perdi-me muitas vezes pelo mar.
Ignorante da água vou buscando
uma morte de luz que me consuma.


LORCA, Federico García. Obra poética completa. São Paulo: Martins Fontes, 1989. Tradução de William Agel de Melo.


8.12.13

autobiografia de todo mundo



Durante todo esse tempo não escrevi nada. Não havia escrito nem estava escrevendo nada. Não havia nada dentro de mim que precisasse ser escrito. Nada precisava de qualquer palavra e não havia palavra alguma dentro de mim que não pudesse ser dita e consequentemente não havia palavra alguma dentro de mim. E eu não estava escrevendo. Comecei a me preocupar com identidade. Eu sempre fora eu porque tinha palavras dentro de mim que tinham de ser escritas e agora qualquer palavra que eu tivesse dentro de mim poderia ser dita não precisava ser escrita. Eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece. Mas será que eu era eu quando eu não tinha nenhuma palavra escrita dentro de mim. Isto era muito chato. Algumas vezes pensei em tentar mas tentar é morrer e assim na verdade não tentei. Não estava escrevendo nada.


STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2010. Tradução de Júlio Castañon Guimarães.


4.12.13

Leblon



O menino olha para o mar:
lá no fundo ele se funde ao céu
mas atrás há um muro e aquém do olhar
pulsam sangue e morro e mata e breu.


CICERO, Antonio. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.