Mas nem mesmo com referência às mais insignificantes coisas da vida somos nós um todo materialmente constituído, idêntico para toda a gente e de que cada qual não tem mais do que tomar conhecimento, como se se tratasse de um livro de contas ou de um testamento; nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio. Até o ato tão simples a que chamamos "ver uma pessoa conhecida" é em parte um ato intelectual. Enchemos a aparência física do ser que estamos vendo com todas as noções que temos a seu respeito; e, para o aspecto total que dele nos representamos, certamente contribuem essas noções com a maior parte. Acabam elas por arredondar tão perfeitamente as faces, por seguir com tão perfeita aderência a linha do nariz, vêm de tal modo nuançar a sonoridade da voz, como se esta não fosse mais que um transparente invólucro, que, a cada vez que vemos aquele rosto e ouvimos aquela voz, são essas noções o que olhamos e escutamos.
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. São Paulo: Globo, 2006, p. 39-40. Tradução de Mario Quintana.
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