29.2.12

Poesia da recusa (1)



Não gosto de prazer premeditado.
O mundo, às vezes, é um borrão escuro.
Eu, meio bêbado, estou condenado
A ver as cores de um viver obscuro.

O vento brinca e às nuvens descabela.
A âncora cai no fundo do oceano.
E inanimada, como numa tela,
A alma pende sobre o abismo insano.

Mas amo estar nas dunas do cassino,
A larga vista da janela baça,
Um fio de luz na toalha que desbota,

À minha volta o mar verde-citrino,
Vinho, como uma rosa, em minha taça
E eu a seguir o vôo da gaivota.


MANDELSTAM, Óssip. Cassino. In: CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.

25.2.12

Prelúdio



O que eu sou, quero dizer a mim mesmo
para que venha a sabê-lo pouco a pouco.
Sejam minhas palavras não um canto
impossível agora, mas retrato
que socorra e console enquanto espero
e receba o que não posso mais conter.
Pudesse eu celebrá-las, as rosas e as estrelas
cantar a noite o silêncio a morte a música...
porém, porque não amo, o mundo me repele
e vivo aprisionado atrás das pálpebras
à espera condenado, à angústia, ao sono, ao tédio.
Talvez a infância, que é minha... mas nem isso,
que toda coisa ou ser, até lembrança
só se deixa cantar quando se sabe amada. Se não amo
só me resta esperar, navegando em meu sangue.
Agora, não vos direi paisagens, porém sonhos
jamais saudades, mas desejo e esperança
e da beleza só pressentimento. E falarei da amada
hoje miragem, mas amanhã visita
que trará tudo e encontrará somente
amor e enfim um canto - de alegria.


FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Pesquisa e organização de Maria Eugenia Boaventura.

23.2.12

O gato



Vem cá, meu gato, aqui no meu regaço;
Guarda essas garras devagar,
E nos teus belos olhos de ágata e aço
Deixa-me aos poucos mergulhar.

Quando meus dedos cobrem de carícias
Tua cabeça e o dócil torso,
E minha mão se embriaga nas delícias
De afagar-te o elétrico dorso,

Em sonho a vejo. Seu olhar, profundo
Como o teu, amável felino,
Qual dardo dilacera e fere fundo,

E, dos pés à cabeça, um fino
Ar sutil, um perfume que envenena
Envolvem-lhe a carne morena.


BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal: Edição Bilíngue. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira.

para Bruno Cosentino e Alba Maria

1.2.12

Vivendo sob o fogo (2)



A criação lírica nutre os sentimentos perigosos, mas apazigua os gestos. Um poeta é perigoso somente quando não escreve.


TSVETÁIEVA, M. Vivendo sob o fogo: confissões. São Paulo: Martins, 2008.